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Amar Clarice Lispector é se permitir entrar em um mundo onde as palavras respiram, pulsando com a intensidade da vida e da alma humana. Seus livros não apenas contam histórias; eles nos conduzem a um mergulho profundo em nós mesmos, revelando emoções que muitas vezes nem sabíamos que existiam.
Clarice transforma o cotidiano em poesia, o silêncio em reflexão, e o simples ato de viver em questionamento existencial. Ler Clarice é sentir, pensar e se emocionar ao mesmo tempo – é descobrir que a literatura pode tocar o que há de mais íntimo em cada um de nós.
Para entender, leia esse trecho de Água Viva, um dos seus livros mais intrigantes e extraordinários:
“Os dias. Fiquei triste por causa desta luz diurna de aço em que vivo. Respiro o odor de aço no mundo dos objetos. Mas agora tenho vontade de dizer coisas que me confortam e que são um pouco livres. Por exemplo: quinta-feira é um dia transparente como asa de inseto na luz. Assim como segunda-feira é um dia compacto. No fundo, bem atrás do pensamento, eu vivo dessas ideias, se é que são ideias. São sensações que se transformam em ideias porque tenho que usar palavras. Usá-las mesmo mentalmente apenas. O pensamento primário pensa com palavras. O “liberdade” liberta-se da escravidão da palavra. E Deus é uma criação monstruosa. Eu tenho medo de Deus porque ele é total demais para o meu tamanho. E também tenho uma espécie de pudor em relação a Ele: há coisas minhas que nem Ele sabe. Medo? Conheço um ela que se apavora com borboletas como se estas fossem sobrenaturais. E a parte divina das borboletas é mesmo de dar terror. E conheço um ele que se arrepia todo de horror diante de flores – acha que as flores são assombradamente delicadas como um suspiro de ninguém no escuro. Eu é que estou escutando o assobio no escuro. Eu que sou doente da condição humana. Eu me revolto: não quero mais ser gente. Quem? quem tem misericórdia de nós que sabemos sobre a vida e a morte quando um animal que eu profundamente invejo – é inconsciente de sua condição? Quem tem piedade de nós? Somos uns abandonados? uns entregues ao desespero? Não, tem que haver um consolo possível. Juro: tem que haver. Eu não tenho é coragem de dizer a verdade que nós sabemos. Há palavras proibidas. Mas eu denuncio. Denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer – e respondo a toda essa infâmia com exatamente isto que vai agora ficar escrito – e respondo a toda essa infâmia com a alegria. Puríssima e levíssima alegria. A minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas – porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres. Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez sequer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade. Eu estou – apesar de tudo oh apesar de tudo– estou sendo alegre neste instante-já que passa se eu não fixá-lo com palavras. Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. Amor impessoal, amor it, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. Viver é isto: a alegria do it. E conformar me não como vencida mas num allegro com brio. Aliás não quero morrer. Recuso-me contra “Deus”. Vamos não morrer como desafio? Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Não me mate, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. Vou ficar muito alegre, ouviu? Como resposta, como insulto. Uma coisa eu garanto: nós não somos culpados. E preciso entender enquanto estou viva, ouviu? porque depois será tarde demais.”
